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8 de julho de 2022

Pleasure: o hedonismo e o estoicismo degladiando-se

Dirigido por uma diretora feminista, a sueca Ninja Thyberg, podemos afirmar que "Plesure" fica no limiar entre o filme denúncia e o fetichismo, cujas fronteiras estão cada vez mais tênues, ainda mais na pós-modernidade.

Sem se aprofundar nas motivações exatas da protagonista ("vim porque gosto de sexo"; "quero chupar pau"; "fui estuprada pelo meu pai", seguido de umas risadas que descredibilizam a fala), o filme funciona por acompanhar de perto uma aspirante à atriz pornô, mas também por mostrar os bsatidores das produções. E engana-se que a diretora demoniza o sexo em si. O projeto, inclusive, conta com grande parte do elenco proveninete do mundo pornô, o que confere um olhar menos moralista ao produto final, como por exemplo, algumas cenas em que os produtores de fato estavam sendo simpáticos e se importando com os atores e atrizes em cena. Mas óbcio que nem todos. A cena em que a moça, incialmente consentindo em fazer um sexo mais pesado, é obrigada a continuar, mostra o poder da coerção nesse mundo, e de como é difícil ver os limites daquilo que estamos dispostos a fazer.

Impressiona como a câmera de Thyberg torna tudo tão orgânico: do close no rosto da protagonista às cenas em que ela faz sexo oral, os cortes não são abruptos, não há uma mudança na tonalidade ou na trilha sonora, ponto para a produção que torna as cenas de sexo coesas com a vida da protagonista vivida por Sofia Kappel. Aliás, numa performance difícil, pois não sabemos ao certo até que ponto ela está gostando de viver aquele mundo, só sabemos que a jovem atravessou o oceano, da Suécia para os Estados Unidos, com uma questionável certeza, jogando-nos das incertezas e no universo pornô abruptamente, ainda que tudo isso faça parte dos conflitos internos da personagem.

A câmera também passeia incansavelmente pela relação dela com as amigas e os agentes, até chegar de forma totalmente verossímel nos filmes dentro do filme, o ato em si, e faz esse passeio de forma lúcida, embalada por uma trilha sacra que confere uma relação dualista à obra. Aliás, tudo aqui é meio antagônico, do olhar da protagonista (confusa, assustada, tentando sentir prazer ou verdadeiramente sentindo?) ao título, um prazer que é posto toda hora à prova. Não há uma trilha pop que confira diversão às cenas, tudo é feito para você questionar o que vê, e isso é mais um mérito para a película.

E a grande pergunta que o filme levanta é: vale à pena? E esta pergunta cabe tanto aos produotes, atores e atrizes quanto ao público que consome. No caso de quem se arrisca a viver disso, qual o limiar entre prazer e a obrigação? Até que ponto é desumano e até que ponto nada mais é do que uma necessidade humana? Afinal, o filme não condena o sexo em si, mas deixa pro espectador pensar até que ponto a busca pelo prazer (pleasure=prazer) é saudável ou nos torna livres, e isso vale para todos que, de alguma forma, alimentam essa indústria. É possível falar em liberdade aqui? Pois desconfio que essa crítica à suposta liberdade acabe por feitichizar ainda mais esse conceito de sexo enquanto mera reprodução das estruturas hierárquicas de submissão.

Por exemplo, o revanchismo entre as amigas deixa escapar o quanto se prende o roteiro a uma visão que negligencia o ponto de vista puramente feminino. Fora a última cena, meu deus, uma cena lésbica, há algo mais clichê para os machos sedentos por objetificação dos corpos femininos? E o fato da protagonista assumir de vez o papel do ativo dominador, fincar-se nos espaços VIPs (reservados às atrizes de maior sucesso), custou-lhe não apenas a amizade, mas até mesmo o desconforto consigo mesma.

A falta de um aprofundamento biográfico causou certa frieza quando ela se desculpa pelo sexo sujo feito com a sua companheira de cena. Ali havia um lampejo da sua humanidade e do caminho de degradação a que estava incorrendo, mas como o roteiro nos conduz sem julgar, o espectador de fato não sabe até que ponto a protagonista se vê, se num pedestal ou se no fundo do poço. Até que ela manda parar o carro para sair dali, fugindo do ambinete de claustrofobia e de tudo aquilo que lhe causava dor. Ainda é sobre prazer e liberdade?

Como disse no começo, confundir a linha que separa a denúncia do feitiche é um perigo, ainda mais quando alguns elementos do roteiro e até mesmo a atuação ambígua de Kappel podem ser questionados. Mas ao menos o filme cumpre sua função: de fazer pensar. E se você, como eu, também se excitou em algumas cenas, cabe-nos refletir sobre como anda a fronteira dos nossos desejos. Talvez Freud ajude nessa empreitada. E se um filme nos faz revisitar a psicanálise, já valeu o ingresso.

The Janes e o retrocesso da suprema corte norte-americana

Há uma tendência de que os documentários produzidos nos EUA ganhem uma projeção pela crítica social contundente ao seu status quo, e olha que nem estamos falando de um Michael Moore da vida. "A 13ª emenda", "American factory", "Athlete A", "Margens de uma guerra", todos muito relevantes para mostrar o quanto o berço da democracia moderna ainda padece de direitos a suas populações minoritárias.

"The janes", dirigido por duas mulheres, Emma Pildes e Tia Lessin, conta a história de um grupo de mulheres que se organizaram para viabiliar procedimentos de aborto a mulheres, isso no final da década de 1960, quando a suprema corte norte-americana ainda não havia reconhecido o direito. Foi somente em 1973 que houve o reconhecimento jurídico do procedimento, tornando-o legal. Hoje em pleno 2022, é como se retroagíssimos uns 50 anos, dado que escrevo esta análise justamente no mês em que a suprema corte resolveu revogar a decisão, cabendo aos estados federados nos EUA decidir sobre o caso.

É interessante ver no filme o papel de outsiders, que recai bem mais forte sobre as mulheres, justamente numa época em que explodem revoltas de grupos minoritério: é o apogeu do movimento negro, hippie e do movimento gay, para ficar em alguns exemplos. Chicago, o caldeirão das identidades, ferve e pulsa as críticas sociais que norteariam o pensamento da esquerda pós-moderna, cuja ênfase identitária torna-se a bandeira maior das suas causas. As mulheres, inviabilizadas na retórica desses movimentos (salvo raras exceções), clamavam por maior organização e por uma luta mais específica, criticando aquilo que Nancy Frase vai chamar de política de reconhecimento; era necessário reforçar uma política de diferenças.

O documentário, no entanto, desliza naquele que também é o seu ponto forte. Ao trazer à tela o ponto de vista das mulheres que construíram o movimento, torna-se demasiadamente orgânico para o entendimento da questão, e isso é muito bom. De fato, ouví-las nos transportará àqueles anos (o trabalho de edição é sensacional, há muitas imagens que vão aparecendo de forma dinâmica e não muito cansativa); entrementes, peque por trazer visões unilaterais e homogêneas, quase não há contrapontos a serem tecidos.

Não sei se a falta de um antagonismo seja uma motriz essencial a essa espécie de documentário, pois de fato não precisou de muito para impactar. A linha conduzida pelo roteiro é bem transparente, acompanhamos o desenvolvimento da rede de apoio feminino sendo construída e crescendo, nos lugares inomináveis e nas metáforas esquivas a que se submetiam ("o lugar, "a fachada"). Tudo isso faz parte de um processo de invisibilidade cujos grupos minoritários sabem melhor do que ninguém como lidar, engajando uma estratégia de sobreviência dado o desamparo a que tais mulheres eram submetidas. Mas chamo a atenção para o fato de que, em alguns momentos, ter uma visão constra-argumentativa ao que se propõe pode ser enriquecedor, ao menos para desmascará-lo: por exemplo, na condescendência dos policiais, apenas trata-se superficialmente algo que poderia render ainda mais, já que o fato de muitos "passarem pano" para o aborto revela um traço da masculinidade perversa, tomada pela epistemologia do poder formal, com o mainstream vociferando o moralismo no público, mas abraçando a ilegalidade no privado. É aquela velha máxima, "homens são contra o aborto até o dia em que a amante engravidar". Numa sociedade tomada por simulacros, creio que essa máxima mereça especial atenção.

Para fechar, tivemos recentemente a retomada do caso "Roe contra Wade" em 2022, como dito anteriormente, um caso ocorrido no Texas em 1970. Na ocasião, a mulher queria ter o direito de abortar legalmente. Alguns fatos curiosos chamam a atenção nesse exemplo: não se tratava de uma mãe solteira, o casal estava lutando juntos na justiça. E or promoores, talvez inteligentemente, aguardaram as eleições de 1972 (Nixon, republicano, fora reeeleito) para decidir em janeiro de 1973 que a mulher teria sim o direito ao aborto, evocando as máximas já conhecidas do liberalismo clássico: proteção individual. De um lado, a estratégia. De outro, a força que o poder da pauta faminista tem para incendiar eleições. Não mudamos nada meio século depois.

Às mulheres, recai constantemente o peso da prova e do higienismo latente ao qual devem submeter-se. No Brasil, ainda se discute se uma gravidez pronvinda de um estupro de uma menina de 13 anos teria possibilidade de ser interrompida, ao mesmo tempo em que se massacram uma atriz quando ela decide por doar o filho indesejado (também por estupro) para adoção. É como se a todo instante tivessem que pôr à prova uma decisão que deveria ser pessoal e escolha da própria mulher. Isso nos leva a concluir que "The Janes" fez o correto ao dar voz altissonante às mulheres. já estigmatizadas por natureza, e toca o foda-se para os machos, que há muitos vem decidindo por elas. É reparação histórica, mas também é provocação. É preciso sempre, como diz Norbert Bobbio, vigiar, e nao apenas lutar para garantir os direitos, pois uma vez conquistados, podem, ao menor dos vacilos, sofrer um revés, logo, é necessário protegê-los.

25 de maio de 2022

"The fallout" e a saúde mental da juventude: precisamos falar sobre isso

8,5/10

Quando dei o "play" para assistir ao filme "The fallout" (traduzido "a vida depois), a única informação que eu tinha era a do cartaz, sequer tinha lido a sinopse do filme. Ao iniciar mostrando o cotidiano dos amigos Vada (Jenna Ortega) e Nick (Will Ropp), embalados por sorrisos, descontração, música pop e piscadelas a um crush, logo entrei na vibe de "mais um típico filme de adolescente", e para o meu espanto, nos minutos seguintes todo meu mundo desmoronou, e numa cena primorosa vemos a protagonista Vada enclausurada no banheiro da sua escola com uma garota super popular, dividindo o box no banheiro para fugir dos tiroteios que assombravam o prédio. Só ouvimos os tiros, mas encarnamos toda a sensação de medo e insegurança, e quando um outro aluno entra, ficamos tão tensos quantos os personagens, como se o perigo estivesse tão próximo, numa sensação asfixiante

No momento em que escrevo isso (25/05/2022), quatro meses após o lançamento do filme no Brasil, as notícias de massacre em escolas norte-americanas novamente ocupam os noticiários, dessa vez no Texas. Crianças entre 7 e 11 anos mortas, além de professores. O atirador compartilhou fotos das armas em suas redes sociais. É absolutamente agoniante pensar que a escola pode ser o reduto de sentimentos tão díspares, e do quanto a educação está longe, na mente de algumas pessoas, de ser tão sedutora quanto o crime, os quais muitas vezes oferecem status e uma sensação de poder inebriantes.

Estamos longe, muito longe de entender a cabeça dos jovens, e isso sem considerar o quanto o fardo já é pesado demais: o excesso de informações das redes socias e a pressão social em ser visto e aceito (Vada, ao entrar no banheiro, queria se aproximar da popular influencer Mia, mas se sentia inferior; acabaram se aproximando pelo trauma), os conflitos internos com a sexualidade, o sentimento de impotência e de insegurança, a relação com os pais (tão próxima e tão perto). Numa cena de Vada com o pai, ambos gritam seus medos e inseguranças num ambiente aberto, com alguns palavrões, e embora um pouco apelativa a cena é clara: ninguém faz ideia do que tá acontecendo e de como podemos contornar a situação, nem mesmo os adultos.

A sempre carismática Shailene Woodley dá vida a uma psicóloga, mostrando a importância do trato profissional à nossa saúde mental. A jovem Vada está devastada, sofre sentimentos confusos e normais a adolescentes, mas tendo que lidar com a família, com os amigos (em determinado momento, seu melhor amigo Nick pretende agir politicamente, e ela, de perfil mais contido, sente que não o acompanha), e ainda tem a questão da sua sexualidade, experiências com drogas (de ácidos a bebidas) e... claro, a escola! Este lugar que poderia ser um refúgio, mas é palco onde a ansiedade parece fugir ao controle, onde os sentimentos entram em erupção.

Ao mesmo tempo em que o roteiro acertou em focar na tensão sibjetiva do psicológico de Vada, há de se destacar que haveria espaço para um melhor desenvolvimento dos demais personagens, como o próprio engajamento do Nick, as questões pertinentes sobre as consequências do uso das redes sociais no arco vivido pela Mia, a relação com os pais de Vada e sua irmã, que havia acabado de menstruar, e mesmo sua relação esporádica com o garoto Quinton (vivido pelo ótimo Niles Fitch). Infelizmente tudo soou superficial, mas ao menos é compensado com a entrega da Jenna Ortega.

Se você for pai ou mãe, certamente sentirá desejo de abraçar seus filhos e protegê-los numa caixinha. Quando você pensa que o filme caminha para a esperança, eis que o desfecho retorna você para a realidade e para o ciclo pernicioso que nos assola. A tensão não se esvai e de repente você pode se ver junto da personagem, deixando o medo e o trauma lhe invadirem.

Não é um filme fácil, mas por fugir dos clichês adolescentes, é absolutamente necessário. Acertadamente, ao focar nas consequências psicológicas, o filme não fetichiza a violência, no entanto, tenho receio de que esteja fetichizando a dor. É muito complicada essa ambiguidade: filme necessário, mas não sei até que ponto os jovens têm a maturidade de assistí-lo, e nem se trata de idade. De temática urgente e de digestão altamente complexa, o fato é que não poderemos apartar a juventude da realidade, tão cruel quanto as imagens não mostradas no filme. Num ano em que tivemos "Playground" e "The innocents" para falar sobre bullying na infância, ver que a escola definitivamente não é o lugar mais seguro do mundo é impactante. Seria necessário resgatar modelos mais repressivos? Seria necessário revolucionar nosso ensino? Qual, afinal, é o papel da escola? Estamos preparados para lidar com toda essa carga emocional? Aliás, até que ponto somos responsáveis pelo estado de desamparo em que se encontra a atual geração?

Queria deixar uma mensagem mais positiva, pois sinto que o filme ressaltou com tanto amargor os conflitos e medos, deixando o amor e a esperança parecerem tão distantes... Mas talvez a postura idealista, hoje, seja utópica demais. Talvez se esconder em um box de banheiro seja necessário somente em certo momento, como autodefesa, mas como Nick pretendia, seria preciso agir e fazer bem mais. Não sabemos exatamente como, mas dar valor ao caminho da mudança e fazer dos jovens mais protagonistas, pode ser o começo de um mundo melhor. Ou não.

"Compartment" nº 6 e o suspense pelo desconhecido

Tendo como base o livro homônimo da escritora finlandesa Rosa Liksom, o drama "Compartment nº 6" tem pegadas de suspense e ritmo meio tenso, pondo o expectador claustrofobicamente numa pequena cabine de trem para uma viagem de alguns dias, focando na estudante Laura.

O filme se inicia no partamento de Irina, a namorada de Laura, junto com amigos intelectuais e um tanto quanto soberbos. Ficaremos sabendo adiante que Irina é professora, sendo Laura uma estudante, o que já mostra certa hierarquia entre ambas, mas não apenas isso. Ao que parece, a relação que elas têm vagueia entre o idealismo construído por Laura e a toxicidade emanada por Irina, já que Laura se apega bem mais do que a outra, e Irina parece fazer o tipo mais indiferente. As duas planejam uma viajem para Murmansk, ao círculo polar ártico, a fim de conhecerem um famoso petrógrafo (a petrografia é uma espécie de ramo de estudo da geologia, sobre rochas), sendo o lugar algo que chama atenção de especialistas. Mas Laura acaba tendo que fazer a viagem sozinha.

Já é desolador demais ver que sua namorada não deu a devida importância, e o sentimento de solidão construído no olhar de Laura, na música triste, na sua apatia em interagir, é gritante. ao mesmo tempo, seu companheiro de cabine, Lyokha, vivido pelo ótimo Yuriy Borisov, passa aquela sensação de insegurança que talvez toda mulher conheça bem, primeiro pelo simples fato dele ser homem, e segundo pelo seu jeito meio rude e pitoresco. Ainda bem que o ator consiga equilibrar esse homem de trejeitos simples com o ar sisudo e grotesco sem cair no clichê, possibilitando, ao longo da projeção, desconstruí-lo em camadas que até então não eram possíveis deduzir, smepre ficamos com um pé atrás com o personagem, itensificado pela edição e direção do filme.

Assim, acompanhamos um exercício de desapego de Laura à namorada e também de desconstrução dos esteriótipos que a circundam, posta a necessidade de interação que ela deve ter com estranhos. À certa altura, ela também se envolve com um outro personagem, muito mais polido e educado do que Lyokha, porém, eticamente falando, muito mais ordinário. Sim, as aparências enganam, e é gostoso acompanhar a mudança gradual dos personagens, inicialmente mais contidos e fechados, para serem desnudas camadas cada vez mais fundas de suas personalidades.

"Não se deve julgar o livro pela capa" talvez seja uma das lições a que o filme se propõe, mas também é sobre a fluidez da vida, a necessidade de ligação mesmo em ambientes improváveis para ver o desabrochar de relações mais profundas. Afinal, é um risco se abrir para estranhos, ao mesmo tempo, por que não? A vida passa como um sopro, e de repente uma companhia boa em uma conversa despretensiosa sobre projetos profissionais de vida pode ser interessante. O ar episódico marca o filme até o seu desfecho, e conta com algumas passagens que a produção tentou marcar visualmente, como a chegada dos personagens ao tal petrógrafo. Não há nada de tão grandioso lá, mas a jornada (a forma como Laura finalmente chegou ao destino, tendo que vencer a barreira do inverno intenso na região e as dificuldades de percurso) e, principalmente, a companhia, trazem significados mais intensos, deixando tudo mais nteressante e belo.

Talvez tenha me incomado esse tom de uma crônica despretensiosa (fica a sensação de que os personagens nem voltarão a se ver), mas é impossível não arrancar um sorriso, nem que seja tímido, pela simples possibilidade de ver poesia na vida onde menos se espera. Um desconhecido é uma porta que pode se abrir, e apesar dos riscos, como sabê-los? Apenas vivendo. Afinal, também podemos nos decepcionar com pessoas próximas (a exemplo da namorada de Laura). Não estamos seguros, e um compartimento de trem ou uma singela viagem apenas são fragmentos de tantos mundos e sensações possíveis.

22 de maio de 2022

"You won't be alone": a influência da "Idade das trevas" para o feminismo

O filme "You won't be alone" foi lançado no dia 1º de abril de 2022, roteirizado e dirigido pelo estreante Goran Stolevski. A obra é um exemplar vindo da Macedônia, vizinha à Grécia, retratando em forma de horror (e muito lirismo) a influência da Idade Média, sobretudo nos corpos femininos. O filme tem como cenário uma aldeia que lembra bastante o cenário feudal da "Idade das trevas".

A história começa em torno de uma criança recém nascida que chama atenção de uma bruxa. A mãe, para proteger a criança, faz um pacto com a bruxa: poupar a vida dela pelo menos até os 16 anos. Só nesta introdução já dá para pensarmos como a Idade Média tratava as crianças: como seres incabados, mini adultos (nesta época, a infância e a juventude não eram vistas em suas peculiaridades). A bruxa atende o pedido da mãe, mas corta a língua da criança, mostrando que a menina não teria sequer o poder da fala, a possibilidade de ser alguém plena. Mostra o silenciamento a que alguns corpos são submetidos.

A mãe, então, tenta esconder a criança numa caverna, ao longo de 16 anos, mostrando a fragilidade da socialização da jovem, retirando-a do convívio dos demais. Mas a medida não basta para despistar a bruxa, que retorna na forma de uma águia para resgatar a adolescente. Ao sair da caverna, a menina no entanto, embora seguida pela bruxa, deve desbravar o mundo sozinha, a bruxa apenas a observa de longe. É como se ela estivesse saindo da caverna de Platão para desbravar o mundo, mas uma sombra ou uma maldição sempre a acompanhasse.

Sozinha, a moça começa a notar o seu corpo, a necessidade de se alimentar, a obrigação de ter que sobreviver. E aí a própria jovem comete assassinatos: inicialmente de um cabrito, para comer suas vísceras; após retornar à aldeia, ela se alimenta inclusive de uma outra mulher, come seus órgãos internos e assume a forma dela.

Tudo que acontece no filme tem muito sangue e as imagens são cheias de crueldade, no entanto, a estética do filme usa uma trilha poética, e acentua que a garota a faz por pura necessidade. Ao assumir o corpo da mulher que a devorou, ela terá que sobreviver a outras provações além da busca por alimentação, como controlar seus impulsos sexuais, seus desejos, não poder se impor num mundo onde homens mandam e as mulheres obedecem. Mesmo podendo falar, ela é silenciada.

Ao longo do filme, ela ainda toma o corpo de um cachorro e de um homem. Especialmente neste último, na forma masculina, quando ela se aproxima de uma boneca ela também sofre perseguição, como um ritual de exorcismo, mostrando como a sociedade expurga os traços afeminados e os maltrata. No filme ainda há cenas de mulheres sendo queimadas vivas, mulheres que são forçadas a casar e fazer sexo, a epós ter uma filha, vive atormentada para que a bruxa não pegue a própria filha.

O filme no entanto, termina com uma mensagem de esperança ao perceber nas crianças, em especial nas meninas, uma certa pureza, qua protagonista nunca teve pois teve sua infância roubada ao cresccer numa caverna. Ou seja, o filme passa a mensagem de que nascemos puros e sem crualdade, mas a sociedade é que nos corrompe, mostrando que, se quisermos ter um mundo de paz, é preciso cuidar das crianças e do processo de socialização, pois todas as formas de violência e preconceito são cultivadas ao longo da vida, não são condições da natureza humana, especialmente a condição da mulher.

A Idade Média cultivou o medo e o adestramento, especialmente dos corpos femininos. Trata-se porém, de semear a liberdade e a fraternidade para vivermos melhor, e o diálogo e respeito entre os gêneros. A bruxa nada mais é do que a maldição do padrão social que recai aos corpos femininos, que eram obrigadas a servir e a se adequar, não podendo expressar-se livremente. Mostra como as mulheres eram subjugadas pelo patriarcado, e como essa concepção ainda vigora até nossos dias.

20 de maio de 2022

Linklater e suas fábulas de amadurecimento a partir do Zeitgeist dos anos 1960

9/10

Eu amo absolutamente TUDO que o Richard Linklater entrega, sempre com muito carinho e com muito conteúdo a mostrar. Ele tem a melhor trilogia do cinema pela regularidade dos filmes (Antes do amanhecer, Antes do pôr do sol, Antes da meia noite), e tem um dos projetos mais ambiciosos em Boyhood, ocasião em que tentou domar o tempo em um único filme, com cenas do cotidiano de um garoto em várias etapas de sua vida, que mais parecem nossas queridas crônicas (um estilo literário bem rico no Brasil). Em "Apollo 10 e meio", Linklater retoma a ideia de amadurecimento, mas dessa vez se fixa no ano de 1969, quando o homem foi à lua, e de quebra passeia pelos costumes da época.

Bem, não exatamente ele se fixa no ano de 1969, pois o filme regride anos antes para contar a vida do protagonista Stanley, um menino comum que cursava a quarta série, quando é abordado por agentes da Nasa para que cumpra a inusitada proposta de viajar ao espaço, precedendo a preparação à famosa missão Apollo 11. O nome do filme, portanto, refere-se a um número entre 10 e 11, pelo fato da missão ser ultrassecreta (segundo os agentes misteriosos, houve um erro de construção na cabine, por isso precisavam de alguém "menor"), além de remeter à idade do garoto.

Claro que tudo isso é uma desculpa para o diretor reviver os anos 1960, e o filme descamba para uma espécie de documentário, mas para nossa sorte, um retrato muito engraçado de Houston, da cultura americana e daquela família em específico, conseguindo uma proeza: dá um aula de história ao mesmo tempo que consegue criar uma conexão sentimental com os personagens.

Com vários recortes do cotidiano, o filme tinha tudo para se perder em uma colcha de retalhos enfadonha, mas estamos falando de alguém que dirigou Boyhood, e sabe do potencial que tem uma biografia, mesmo com diversos elementos contribuindo para o insucesso da história (como o risco de perder o fio condutor da narativa, o excesso de situações e personagens, a falta de ligação sentimental etc). Stanley conta com muitos irmãos, e embora o filme não tenha espaço para construí-los em camadas mais fundas, ao menos criou algo coeso e intimista a ponto de se divertir com o clima familiar. Todos tem suas personalidades, embora nem sempre isso seja evidente (repare, por exemplo, na irmã mais velha, sempre com um olhar crítico mais aguçado).

Mesmo em um trabalho voltado ao streaming, Linklater consegue, em comentários rápidos, tecer críticas seja à Guerra do Vietnã ou aos movimentos identitários emergentes, ou à cobertura midiática, enfim, vários temas surgem, sem muito aprofundamento, mas considerando a narração da perspectiva de uma criança, essa falta de um mergulho mais profundo nos temas não deixou o filme superficial, ao contrário, tornou-se verossímil, e definitivamente escapou da verborragia.

Particularmente achei o clímax extraordinário, mesclando cenas da "Apollo 10 e meio" com a da "Apollo 11", num trabalho de edição muito bem feito. E além disso, ao tomar como certo a histpriciade dos acontecimentos, o filme dá um toque de leve spbre a importância de nossas memórias, do quanto a história tem um peso na nossa formação identitária.

Linklater demonstrou que continua inspirado, e ainda contou com uma boa produção, designer, edição de som, enfim, uma equipe técnica que entrega um bom ritmo e confere agilidade ao roteiro, com destaque para aparição e homenagem a vários artistas da época (o que inclui cantores, bandas, cineastas, atores, mas também os próprios astronautas, que eram como estrelas pops àquela época).

Não sei ao certo até que ponto essas memórias confundem-se com as do próprio Linklater, mas o fato é que o filme convence na sua função de levar à tela o que Hegel chamava de Zeitgeist, o espírito de um tempo. Somos transportados àquela época onde a viagem à Lua trazia esperanças, discussões políticas, projeções futuras. Referências a 2001 e outros filmes de época são apenas a ponta do iceberg que mostram a fragilidade de nossa condição e o quanto verdadeiramente não sabemos para onde caminhamos. Mais de 50 anos depois, até mesmo defensores da Terra plana habitam este planeta. Definitivamente, não podemos reclamar de filme sobre amadurecimento, quando nossa própria espécie vive em eterno porvir.

Red: a Pixar entregando e se entregando

7,5/10

Traduzido no Brasil como "Red; crescer é uma fera", o filme da Pixar/Disney "Turning red" é mais um tiro certo do estúdio, com personagens bem construídos, visual belíssimo, universo gostoso de acompanhar e tabus cotidianos como principal elemento do roteiro. Mas também não é perfeito.

O filme conta a história de Meilin e sua passagem para a puberdade, com direito a cenas de referências fofas demais (nesse quesito, a Pixar não erra, realmente um achado toda a metáfora do Panda vermelho). Ela conta com mais três amigas de escola e uma mãe conservadora, que darão conta do conflito de gerações pelo qual a jovem passa, e de quebra uma boy band chamada "4-Town" e uma tradição milenar que prega o controle das emoções (para não fazer surgir o monstro interior, o tal panda vermelho) para apimentar os atritos. Toda a história se passa no início dos anos 2000.

Diferente de Valente, que retratou o poder feminino numa perspectiva clássica, aqui todo o universo é incrivelmente feminino, não se limitando, obviamente, às meninas, mas sim pelo fato de todo o núcleo principal girar em torno das mulheres, e de como há uma sobrecarga social muito grande sobre os ombros femininos. Só por isso o filme já valeria a conferida. Tal qual em Toy Story, crescer absolutamente deixa marcas profundas, e a personagem precisa equilibrar-se entre a tradição e o mundo secular, seguindo um ideal de liberdade e juventude. E foi aí que o filme me incomodou.

A título de comparação, gostaria de citar o "Viva: a vida é uma festa", filme da Pixar que consegue dialogar com a tradição e os problemas familiares sem descambar para aceitação mainstrem, respeitando as tradições mas revelando o que deve ser revelado, trazendo à tona problemas que estavam no subterfúgio. Em "Red", me incomoda essa exaltação ao universo teen pop de forma bem mais acrítica. Foi até estranho ver isso depois do mesmo estúdio ter criado algo a nível de "Soul".

Não sei se estou ficando velho, chato, ou os dois, mas não me agrada nem um pouco perceber que as ideias de liberdade se confundem em reverenciar, com certa fetichização, boy bands e afins, ou mesmo entregar-se à cultura pop, seja em roupas, linguagens ou gestos. Não digo que o filme deveria rejeitá-los, não se trata de extremos, mas a reconciliação com o mundo da tradição ficou muito superficial, podendo passar a ideia de aceitabilidade à moda, que nada mais é do que tão somente mais outra forma de dominação. A família de Meilin, por exemplo, cuidava de um templo, abrigo de toda a tradição na qual o roteiro gira, e com o desenrolar dos fatos, esse templo vira uma espécie de "Igreja Universal" pronta a recolher suas moedas a qualquer momento, embalada por músicas da cultura de massa. Não é bem esse tipo de ideal de liberdade ou de reflexão que a Pixar vem construindo ao longo dos seus filmes, dotados de um grau de imaginação bem melhor do que o visto aqui. Esse grau de entrega ao senso comum realmente me pegou, e talvez por isso, no filme, haja um certo vazio. De fato, não há um ápice sentimental ou reflexivo, como visto em "Divertidamente", que nos faz pensar fora da caixinha. Aqui a mensagem entra de cabeça no lugar confortável da caixinha, ficou rasa e superficial, inclusive perigosa a ponto de eu achar que pode ser um convite à rebeldia.

Mas essa interpretação não seria de toda honesta sem ressaltar as qualidades do longa, e em se tratando de retratar o universo feminino, ganha muitos pontos. Em uma cena onde Meilin rabisca efusivamente o desenho do crush platônico, podemos associar o ato à masturbação e descoberta do próprio corpo, além das claras referências à menstruação. É de fato gratificante ver os filmes feitos TAMBÉM para o público infantil, tal grau de permissividade. E embora eu esperasse mais do desfecho, não é algo que afete a experiência como um todo, sendo mais um exemplo da qualidade da Disney/Pixar em conduzir tramas cujos vilões provém do seio da sociedade conservadora. E isso é muito bom.

Pleasure: o hedonismo e o estoicismo degladiando-se

Dirigido por uma diretora feminista, a sueca Ninja Thyberg, podemos afirmar que "Plesure" fica no limiar entre o filme denúncia e ...